Na emblemática Praça Vermelha, durante as celebrações pelos 75 anos do fim da Segunda Guerra Mundial, o presidente Vladimir Putin fez um discurso que mesclou o enaltecimento do orgulho nacional com um chamado à cooperação internacional. O evento, tradicionalmente marcado por exibições de força militar e reverência aos feitos soviéticos no conflito, foi utilizado como plataforma para reforçar a centralidade da Rússia no cenário geopolítico. O discurso de Putin evocou a memória da vitória sobre o nazismo como uma conquista não apenas nacional, mas global, alcançada com o pesado sacrifício do povo russo. Esse posicionamento tem duplo objetivo: reafirmar o protagonismo histórico da Rússia e suavizar sua imagem perante o Ocidente.
O patriotismo assumiu papel central na cerimônia, com soldados marchando diante de veteranos e monumentos decorados com símbolos históricos. Putin utilizou essa atmosfera de solenidade para fortalecer a identidade russa, relacionando os eventos do passado à atual posição do país no mundo. Ao destacar que a vitória da Segunda Guerra foi alcançada em grande parte graças aos esforços da União Soviética, ele sugeriu uma espécie de dívida moral dos outros países com Moscou. Essa narrativa não apenas exalta o passado, mas também justifica a postura firme adotada pela Rússia nos assuntos internacionais contemporâneos.
Ao mesmo tempo, o aceno ao Ocidente esteve presente de maneira cuidadosa, mas intencional. Putin evitou discursos hostis e reforçou a importância da cooperação global, ainda que sob os termos da soberania russa. Ele falou sobre a necessidade de união para enfrentar desafios comuns, como o terrorismo e as pandemias, indicando que a Rússia está disposta a colaborar com outras nações. Essa retórica busca reequilibrar a imagem de Moscou em um momento de tensões internacionais e sanções econômicas, posicionando o país como um parceiro confiável e necessário.
Paralelamente às comemorações, iniciou-se o referendo constitucional que pode permitir a permanência de Putin no poder até 2036. Essa votação, embora envolta em controvérsias quanto à sua transparência e legitimidade, é apresentada ao público como uma continuação do projeto nacional. A estabilidade política é vendida como pilar fundamental para a preservação da memória histórica e para a manutenção do status internacional da Rússia. O apelo ao patriotismo, nesse contexto, torna-se uma ferramenta eficaz de mobilização popular e de validação do poder vigente.
O discurso de Putin na Praça Vermelha não é apenas uma homenagem ao passado; é uma peça cuidadosamente construída de comunicação política. Ao misturar elementos de orgulho nacional com promessas de cooperação global, ele busca atender tanto às expectativas internas quanto às pressões externas. Esse equilíbrio retórico revela a estratégia de Moscou: consolidar sua influência doméstica ao mesmo tempo em que tenta aliviar a tensão com as potências ocidentais, sem abrir mão de sua soberania ou ambições geopolíticas.
A memória da Segunda Guerra é utilizada como uma âncora para a narrativa oficial, reforçando a ideia de que a Rússia sempre esteve do lado certo da história. Essa construção simbólica oferece legitimidade moral às ações contemporâneas do governo, sejam elas internas ou externas. Ao se apresentar como herdeira direta dos sacrifícios do passado, a atual liderança busca respaldo para suas decisões políticas. A celebração na Praça Vermelha, portanto, vai além de uma simples cerimônia: ela é parte de um projeto contínuo de reafirmação nacional.
Com o referendo em andamento, a escolha do momento para tal celebração não é coincidência. Há uma tentativa clara de associar a continuidade do governo Putin à continuidade da estabilidade histórica russa. O passado vitorioso serve como argumento para a permanência de uma liderança que se apresenta como guardiã desse legado. Essa associação entre o líder e a nação é reforçada a cada fala, desfile e gesto simbólico, consolidando uma imagem de permanência como sinônimo de segurança.
Assim, o evento de comemoração dos 75 anos do fim da guerra se transforma em muito mais do que uma lembrança histórica. Ele se torna um instrumento de poder, de legitimação e de reposicionamento internacional. A estratégia russa, refletida no discurso de Putin, é clara: utilizar a força da memória para moldar o futuro, tanto internamente quanto na arena global. Entre o patriotismo e o aceno ao Ocidente, a Rússia tenta traçar um caminho próprio, em que reverência ao passado e ambição política caminham lado a lado.
Autor : Latos Simys